Uma vírgula no findomundo
Leia abaixo três poemas de "Uma vírgula no findomundo", de Zeh Gustavo:
RELEGIOSO
Em Praça Bela,
este lugar intocável de nossa utopia geo-
gráfica que ainda vamos fabricar,os louvores a formigas,
a bunda flácida do Senhor,
as amantes gregas e os amigos leais
de Seu Sete Catacumbas
constituem sugestões boas
de temas para quem não está fazendopoesias-améns.
As vírgulas cá maldispostas eu raptei
enquanto e porque havia (nas hospedagens)
cidades e/ou seus túmulos
enquanto e porque havia (nos textos)
rugosidades e/ou seus indícios.
***
ABRAÇADO AO MEU ESTUPOR
eis meu urro
meu grifoe mais um traje de alegorias que mascarem
meu eu soterrado em surras
soma-se uma meia porção de gráficos
manchados de impertinências e intolerânciasmeus gritos diminuídos
diante da mesquinharia das farras breves
é com esse arsenal de trunfos vagos
porém dilatosos, caprichudos,
arrogulhosos de si
com essa alegria miúda e fajuta
após uma noite mijada em risos afortuinadosé que eu vou ao fundo
e assim posso me dilacerar
amiúde e desalternadamente
sem tanto susto
muito no chute
a alma na contramão
a encerar o real com seu cuspe.
***
O CÃO MEDROSINHO
Cão Medrosinho tomava contas
da porta fechada de um chalé
no Mei do Mato.
Latia um bocado de bastantemente além
que os outros barulhos daquele verde todo,
bem mais imensos que ele Medrosinho.
Quando algum vento ou folha lhe atendia, ele retirava-se
em ré, perscrutando de focinho atento
o evento respondeiro de seus latidos.
(Que nem gente, que foge de quem lhe quer.)
Seu procedimento melancolizava
o mundo em derredor. O chalé, mantinha-se
trancafiado de vazios. O Mei do Mato só tinha
matas, galhos, insetos, arvorejos.
(Mei do Mato era belo-triste feito
tentar subsumir a essência do mundo
quando pessoas como o Medrosinho
sabem que ele é feito de devires-mundos.)
Medrosinho vivia de olhos marejados, tipo
quem não chora nunca o seu tanto de rir-sofrer,
nem duas lacrimações, nem mesmo
um vasinho d’água de cachoeira.
Medrosinho preferia levar o seu rio
sozinho dentro dele próprio,
até se estrebuchar em alguma pedra de fim.
Sobre o autor:
Zeh Gustavo é músico, escritor, revisor. Publicou, entre outros, os livros Contrarresiliente e Eu algum na multidão de motocicletas verdes agonizantes, além de participar de coletâneas como Porremas e O meu lugar. Co-organizou, com Rafael Maieiro, a antologia poética Jumento com Faixa: deboches e antiodes ao fascismo. Na música, suas composições foram gravadas no álbum Raiz e folha: o cancioneiro de Zeh Gustavo, de Kell Santos, com participação vocal de Zeh em duas faixas.
Informações sobre o produto:
Capa comum: 87 páginas
Formato 14x21
Editora Libertinagem 1ª edição
São Paulo, 2022
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