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O peso das asas em meu colo

O peso das asas em meu colo

          Mal pude sentir seu embalo e já me exila à superfície, desaparecendo sorrateiro antes do primeiro vislumbre da alvorada. Esse remédio está ficando fraco. Tento com todas as forças e estratégias atraí-lo de volta... Até que desisto e me rendo ao café, meu sustento ainda inodoro. Só mais um gole, não, ainda não está pronto. Toda essa água em ebulição. Abro os olhos, do teto brotam galhos desnudos como dedos em riste.  

É sábado. As crianças ainda dormem, mas não importa, pois lá fora outras gritam meu nome. Kraaa-mãeeehhh! São elas de novo, escandalosas araras pousadas sobre as palmeiras do jardim, me antecipam o roubo da pretensa paz. A manhã exibe seus filetes luminosos, fingindo não se importar com os galhos secos que rezam aos céus de setembro. A chuva carece de outro tempo. Há meses não pinga uma gota e nem sinais. Um desastre para os cajueiros tristes. Não bastasse, ainda vêm essas araras barulhentas e irritantes, e devoram-lhe o fruto verdadeiro antes mesmo do brotar de seus apêndices. Os ipês amarelos, iludidos me acenam pela janela do quarto, é certo que temem por suas vidas: floresceram mais cedo esse ano. Às vezes oferecer todas as flores do mundo não é o bastante para sobreviver.

 Levanto-me devagar, arrastando o corpo até a cozinha. Que café horrível! Cinzas de folhas e galhos esturricados é o que parece. Bebo mesmo assim, preciso me manter desperta, apesar do amargor. Caminho quase amanhecida, passos repuxados me empurram até o jardim, tentarei aproveitar a dormência da casa. Houve um tempo em que tomar café no jardim era um daqueles prazeres matinais. Os passarinhos abrolhavam, orquestrando afinados, uma serenata mística entre as folhagens e galhos. Movo-me agora por este cemitério de folhas caídas e troncos desnudos, em cada passo, um olhar cego me acusa de negligência.  As calateias reliquiares, outrora vivas e fervorosas, não têm mais força para se mover com a luz do dia. Rezaram inutilmente. As dracenas, antes altivas, de folhas eretas e de um vermelho vinháceo, agora são apenas caules ressecados e estéreis, onde algumas folhas desbotadas num marrom opaco insistem em se agarrar, teimosas, como se recusassem a aceitar o fim. E as roseiras, coitadas, delas restaram apenas espinhos secos, garras de um predador derrotado. Umas morreram de sede, outras se entregaram às térmitas. Sucumbiram à aridez, suas folhas secando em um testemunho silencioso de dor. As palmeiras, no entanto, fazem jus à fama de resistentes. Ainda se aguentam, embora não brilhem mais. Que se danem!

  • Sobre a autora:

    Lena Tavares nasceu em 1975, na cidade de Tuntum, no coração do
    Maranhão. Geógrafa por formação, doutora em Geociências pela
    Universidade Federal do Pará (UFPA), é professora na Universidade Federal do Tocantins, no curso de Teatro, em Palmas — cidade onde reside. Mãe, cientista e artista, Lena habita a encruzilhada entre o rigor da pesquisa e a leveza da criação. Em suas investigações, abraça uma perspectiva geopoética, em que o território se entrelaça com o sensível, e a ciência encontra a poesia. Autora de diversos artigos em revistas nacionais e internacionais, cultiva desde a infância uma relação visceral com a palavra — matéria que lhe atravessa a carne e a memória. O Peso das Asas em Meu Colo é seu voo inaugural na literatura, onde o verbo ganha fôlego e asas para tocar o mais íntimo das geografias humanas.

  • Informações do produto:

    Capa comum: 120 páginas

    Editora Libertinagem: 1ª edição

    São Paulo, agosto de 2025

    Formato: 14x21cm

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