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Nunca mais Maria!, de Regina Porto

Nunca mais Maria!, de Regina Porto

Leia abaixo o conto "A estranha história de Lurdes", primeiro conto de "Nunca mais Maria!", de Regina Porto:

 

A estranha história de Lurdes


Lurdes era mulher de sentimentos fortes. Ao nascer, trouxe mais que o pecado original. Não era filha da santa, era filha da outra. Até pensava que era para se redimir que a mãe a batizara assim. Carregava, como uma cruz, o peso do nome. Eram sempre as mesmas brincadeiras maldosas. A cada novo namorado, não faltava o “lá vai mais um peregrino para o santuário da santa Lurdes”. 


Além do nome, detestava o trabalho que fazia e que não fora escolha sua. Logo ela que sonhara ser atriz ou cantora. Poderia ser até mulher-dama, dona de bordel, meretriz. Suportaria qualquer adversidade, menos a monotonia desse lugar ordenado com suas cadeiras azuis por trás de mesas desbotadas. 


A luz mortiça filtrada por persianas abaixadas; a fila nervosa e triste, engrossada por caras preocupadas de quem viu o dinheiro acabar antes das contas; o cheiro de sujeira que se desprendia das cédulas velhas; o odor enjoativo das cédulas novas lhe embrulhava o estômago.


Detestava o barulho dos carimbos que martelavam seus ouvidos todo o santo dia de noites mal dormidas. Nos sábados e nos domingos, e até mesmo nos momentos em que rezava ajoelhada na frente de algum santo ainda não canonizado, ouvia a batida seca dos carimbos. Nenhuma criatividade, nenhum pensar, nenhuma opinião, formulário atrás de formulário. Dia após dia. 


Detestava seu tailleur comportado, a saia na altura dos joelhos. Odiava manter os peitos escondidos em blusas de discretos decotes em constante desacordo com o palpitar dos seus desejos. Tinha pavor do bip dos computadores. Tropeçava nos devaneios noturnos que o dia não conseguia apagar.


Assim era Lurdes, uma mulher contida numa função subalterna de um banco qualquer. Até aquele dia em que a noite chegou mais cedo. 


Foi durante a tarde. Tudo começou com a invasão e um sibilar no seu ouvido. Olhou para os lados à procura do responsável, mas não identificou quem tocara tão agudo som. Logo uma orquestra afinava-se em tom seco e desconhecido.


Não reconheceu os músicos nem as notas que voavam dos caixas para a maleta preta. Os sons se tornavam mais distantes. O cheiro de medo ficou tão forte que empesteou o ar. Ela vomitou; fechou os olhos. Deixou-se embalar no odor adocicado do sangue do segurança. Deitou-se ao lado dele, como não tivera coragem de fazer antes.


Nesse ano, as chuvas chegaram mais cedo; montado num alazão o frio se antecipou. À noite, como um convento de carmelitas, se fechou, e raios silenciosos riscaram o céu para logo depois explodirem em ensurdecedoras trovoadas.


Quando Lurdes ganhou a rua, já não se distinguia a calçada. Tentou lembrar-se de algum fato relevante, mas tudo lhe pareceu insignificante diante do prazer que sentia. O mundo havia silenciado. 


Silenciaram o martelar dos carimbos e o murmúrio das filas nervosas; sentiu-se extasiada com o namoro das flores e os arrulhos dos pássaros nos ninhos. As árvores do parque lhe contaram das seivas que deixaram vazar em noites que ninguém viu. Um mundo deslumbrante se descortinara diante da sua ausência.


Mesmo não sabendo onde se encontrava, movimentava-se com desenvoltura. As pedras lhe diziam onde colocar os pés. A água subia suave. A alma — ah, a alma — sentia a alma leve e os seios, por fim, soltos, livres do decote severo. 


A nova sonoridade guiou-a a um lugar onde sempre tivera vontade de ir. Por um instante parou à porta. Entrou envolta por uma nuvem de fumaça; esgueirou-se; tinha dificuldade de tocar na alegria. Subiu ao palco e pegou o microfone. A voz tímida varreu de todos os cantos o pudor acumulado.

 
A visão voltou nítida. Viu um antigo namorado. Não lembrava bem dele, nem do quanto foram fugazes as noites que passaram juntos. Encostado em uma coluna, o garoto que fora seu office-boy a olhava entre divertido e preocupado. Viu a mãe com o vestido preto colado ao corpo. Entendeu o seu sorriso. Fechou os olhos, abriu a boca e cantou como nunca havia cantado em vida. 
 

  • Sobre a autora:

    Regina Porto é pelotense de nascimento e porto-alegrense de coração. Carrega da adolescência alguns poemas escritos em papel de pão e sonhos que só agora aos 70 anos está realizando. Começou a escrever tarde, já com 50 anos depois de fazer algumas oficinas de escrita criativa. Tem contos e crônicas publicados em antologias e alguns troféus na estante. Atualmente é graduanda em  História e membro de alguns clubes de leitura e cinema. Como já escreveu em algum lugar ela sonha em vestir com novas roupas velhas palavras.

  • Informações do produto:

    Capa comum: 100 páginas

    Formato 14x21

    Editora Libertinagem 1ª edição

    São Paulo, 2023

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