Martírio diário, de Ronaldo Dória Júnior

Leia abaixo um trecho que consta em Martírio Diário, de Ronaldo Dória Júnior:
 
Claro que fiquei chocado. Mesmo a assistente social designada para prestar atendimento à vítima disse nunca ter visto algo parecido. O isolamento social foi tão grande que dona Iva não sabia dizer onde morava, qual bairro era aquele onde se encontrava.
O choque da notícia foi acentuado pelo ambiente no qual eu me encontrava. No sofá da sala, minha madrinha dava de comer a sua mãe, Eunice. Com noventa anos e sofrendo os sintomas do estágio avançado do mal de Alzheimer, tia Nicinha vive alheia ao mundo. Como uma criança, recebe na boca a comida dada por sua filha.
Eu me desligo um pouco da triste realidade do noticiário e me concentro na cena da filha que dá de comer à mãe. É também uma cena um pouco triste, sem dúvida, porque a doença é arrasadora. Consome o corpo e a mente, fazendo com que a pessoa deixe de ser quem é. Mas eu consigo ultrapassar toda a tristeza e me atenho, fascinado, à beleza daquele instante.
Cuidadosamente, minha madrinha alisa os cabelos brancos de sua mãe, limpa sua boca com um pano úmido e lhe diz: “Quer mais um pouquinho, mãe?”. Penso em como a vida é irônica e misteriosa... Cinquenta e poucos anos atrás, aqui nessa mesma casa, talvez nessa mesma sala, dona
Eunice alimentou e cuidou de sua filha, e talvez nunca tenha imaginado que os papéis um dia se inverteriam.