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Flora e Fauna, de Luciana Brandão

Flora e Fauna, de Luciana Brandão

Leia abaixo o conto "Jogo de varetas", que compõe "Flora e fauna", de Luciana Brandão:

 

Jogo de Varetas


Jéssica não gostava muito de meninos. Guardava contra eles uma certa desconfiança, um pé atrás. Teve aquela vez que sua mãe foi visitar uma amiga e levou Jéssica junto. A amiga de sua mãe tinha um filho que regulava de idade com Jéssica e eles poderiam passar o dia juntos, brincando e se divertindo. Mal chegaram e Gabriel veio correndo cumprimentá-las.
“Boa tarde, senhoras.”
“Mas que rapaz simpático e educado! Viu, Jéssica, é assim que uma pessoa com bons modos recebe as visitas em sua casa, e não fugindo e se escondendo embaixo da mesa”.
Gabriel pegou Jéssica pelo pulso e a convidou para seu quarto; queria mostrar seus brinquedos e lá tinha mais espaço para jogarem alguma coisa sem se preocuparem com a bagunça. O quarto do garoto era fascinante. Eram tantos brinquedos, parecia até um parque de diversões. Jéssica ficou especialmente admirada com os bichinhos de pelúcia — a coleção completa da Parmalat enfileirada sobre a cama e mais tantos outros abarrotados nas prateleiras, alguns perdidos, jogados nos cantos dos móveis. Jéssica queria saber o nome de cada um deles, mas Gabriel — batizado assim “por causa do anjo” — insistiu para jogarem um jogo.
Jéssica não gostava muito de jogos. A questão toda da competição, do ganhar e do perder, deixava-a nervosa e meio incomodada. Sem contar que geralmente ela acabava ficando meio de fora. Com os primos mais velhos era sempre café-com-leite e com as primas mais novas os jogos eram sempre meio babacas. Em ambos os casos ela sentia como se a verdadeira diversão estivesse em algum lugar que ela não conseguia alcançar, um espaço secreto em que as crianças riam e eram felizes e que ela, por alguma razão, não tinha ainda descoberto.
Mas Gabriel queria jogar varetas e, por mais sem graça e estúpido parecesse, Jéssica achou melhor concordar, afinal de contas ela era a convidada. Melhor não fazer desfeita. E não lhe custava nada fingir que estava gostando.
“Está bem, mas se eu vencer você me empresta o panda?”
Gabriel sorriu, pegou as varetas e se sentou no chão do quarto, de pernas cruzadas. Tinham que jogar ali pois era a única superfície plana, “a cama é muito fofa” e a mesa estava ocupada por outros brinquedos. A verdade, no entanto, é que o carpete do quarto de Gabriel pinicava as pernas de Jéssica, que tinha sido obrigada pela mãe a sair vestindo uma saia curta demais e desconfortável demais para aquela situação.
“Vamos começar. Você fica com as de menina — rosa, amarelo, vermelho e laranja — e eu fico com as outras. Cada um tem que tirar uma vareta por vez, mas sem mexer as outras. Se você conseguir, pode jogar de novo. Se não, perde a vez. Ganha quem conseguir pegar todas as suas varetas primeiro”.
Jéssica não gostou nem um pouco da maneira arbitrária pela qual Gabriel distribuiu as cores. Rosa era sua cor menos favorita de todas no mundo inteiro e, além disso, ela tinha ficado com a impressão que estava em desvantagem, pois havia muito mais varetas nas cores designadas a ela do que varetas de outras cores. Mesmo assim, preferiu não implicar, era só um jogo bobo.
Gabriel soltou as varetas no chão entre os dois; caíram, meio amontoadas, meio espalhadas. “Eu começo! Falei primeiro!” e foi direto catando as mais fáceis, que estavam nas beiradas, longe das outras, até que começou a ficar sem opções. “Passo”. Na vez de Jéssica, ela também começou pelas bordas. Pegou primeiro as mais afastadas e, ao concluir sua jogada, ficou bem contente por ter conseguido mais varetas que Gabriel. O único problema era o carpete, que continuava machucando, raspando na sua pele e agora começava a comichar. Jéssica mexeu um pouco as pernas, tentando puxar a saia mais para baixo.
“Perdeu!”. Levou um susto com o grito do menino.
“Perdeu! Perdeu! Você mexeu várias.”
“Mas não estava valendo.” Ia argumentar, mas Gabriel adiantou-se, pegou uma de suas varetas e com ela começou a espetar as coxas da menina. “Ei, para!”.
“Essa é a regra, quando você perde a vez tem que levar dez espetadas por cada vareta que já recolheu e no seu caso são cem espetadas olha, é só contar, umdoistrêsquatrocinco...” E continuou fincando sua vareta, a cada vez com mais força, primeiro na parte de cima da perna de Jéssica e, a cada golpe, mais
para dentro e mais perto de sua virilha. Jéssica tentou se recolher e se afastar, “Para, eu não quero mais jogar esse jogo”, mas o menino continuou, “Não dá pra desistir no meio do jogo”, e segurou o tornozelo da garota, impedindo-a de se mexer. Até que lá pelo trintaealgumacoisa uma das espetadas pegou em um arranhão antigo e a garota começou a chorar.
“Você é uma mariquinha”.
Ouvindo os gritos, as mães vieram correndo da sala. “Eu não sei o que aconteceu, tia, a gente estava jogando um jogo e de repente ela começou a chorar”, explicou Gabriel, com calma, sentado sobre a cama, abraçado em um panda de pelúcia. Jéssica levantou rápido, as pernas cheias de vergões, e correu para se agarrar à mãe, que deu a visita por encerrada e passou o trajeto todo de volta para casa comentando sobre como já estava na hora de Jéssica crescer e começar a se comportar como uma mocinha.

    R$ 45,00Preço
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