Das cinzas de minha mãe, de Daniela Falcão

Leia abaixo um trecho de "Das cinzas de minha mãe", romance de Daniela Falcão:
 
do útero com a força que a Raiva lhe emprestou. A pequena criatura berrava, decerto pressentindo a desgraça inerente aos malnascidos.
— João... – suspirou.
O bebê, nomeado como aquele que prenunciou o apocalipse, calou-se ao ouvir a voz da mãe. A parteira o resgatou e acalentou, conversando baixinho enquanto limpava sangue e placenta:
— João! Que nome forte! Acabou de chegar, mas já entende, né? Ficaremos aqui, bem quietinhos, não vamos atrapalhar ninguém... oh, que coisinha mais rica! Domitila, o seu moleque é perfeito, veja! — e esticava as perninhas do garoto, inspecionando a limpeza nas dobras.
Domitila se concentrava nos próprios joelhos ainda abertos, recostada na parede úmida do quarto dos fundos do barracão. O sangue já não fluía.
— Vamos, bote o menino pra mamar — disse, empurrando-lhe as pernas e descobrindo os peitos, lustrosos de esforço e de leite. Enrolou o bebê como uma pequena trouxa e o acomodou como pôde, direcionando a boquinha para o bico preto.
Nem a exposição do corpo resgatou a mulher da inércia.
— Domitila, me ajuda aqui, anda. Você sabe como isso funciona, não é a sua primeira vez.
Sim, passo por isso mais uma vez. Quanta burrice cabe numa mulher?
Irritada, ajeitou o corpinho e sentiu a pega. O moleque sugou com força.
Valha-me Deus, mais um.
A dor a resgatou de onde quer que estivesse. Olhou em volta, o quarto cheio de mulheres, trabalhadoras do barracão. As mais velhas, chorosas, se congratulavam como se fossem elas as responsáveis pela nova criatura. Sua filha Janaína se apoiava na porta, olhos arregalados do tamanho de um pires.
Logo será a sua vez, aqui, nesse chão.