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Coração Selvagem, de Tainá Kirst

Coração Selvagem, de Tainá Kirst

Leia abaixo o conto "Lívia", de Tainá Kirst, que integra "Coração Selvagem":

 

Lívia


Fazíamos a mesma cadeira de fundamentos da educação as terças-feiras de manhã. Um trabalho em dupla nos aproximou, na verdade nos apresentou, pois eu falava com poucos colegas e esses poucos eram todos do meu curso, Letras. Lívia cursava Dança, queria ser professora ou pesquisadora da área ou bailarina. Ela não sabia ao certo o que queria, mas tinha certeza de que queria dançar.


A professora da disciplina queria que o pessoal se misturasse mais, então inventou esse trabalho e sorteou as duplas. Quando conheci minha dupla, fiquei tensa em ter como parceira uma menina da dança, mas Lívia era toda querida e sentou do meu lado com um sorriso no rosto que dispensava maquiagem. Seu sorriso era arte pura.


Fizemos o dito trabalho, tínhamos de escolher algumas escolas públicas e observar umas aulas de língua portuguesa, de artes, de dança e de música. Nas escolas aonde chegávamos, Lívia era recebida com carinho pelas crianças, eu (sempre mais introspectiva nessa aura de escritora fracassada) ficava escanteada, o que não fazia diferença alguma para mim, pois detestava ter que conversar e me entrosar. Essa parte das relações públicas ficava a cargo da Lívia.


O trabalho levou dois meses para terminar, depois de apresentado senti falta de estar na presença da Lívia. Ela, sem forçar, foi conquistando minha simpatia e atenção. Reparei que estava apaixonada quando percebi que seu sorriso me fazia sorrir e deixei de fazê-lo com a ausência da Lívia na minha vida.


Chamei-a para tomar um café antes da aula, conversamos sobre as situações que vivenciamos durante o trabalho em dupla, perdemos a noção do tempo, ficamos naquele café por mais de três horas. Acabamos indo ao restaurante universitário e almoçamos juntas. À tarde nós duas tínhamos estágio, então combinamos de terminar a nossa conversa na sexta, acompanhadas de uma cerveja. Eu me senti uma adolescente contando os dias para chegar nosso encontro e quando chegou eu era um poço de nervosismo. Por óbvio que minha ansiedade me fez ser a primeira a chegar ao bar, esperei por ela e parecia uma eternidade. Quando ela chegou, usando um vestido colorido, abri o meu adormecido sorriso ao ver o sorriso dela.


Depois desse encontro vieram muitos outros, as aulas de terça-feira ficaram mais interessantes, pois tomávamos café no intervalo e almoçávamos juntas. E as sextas eram reservadas para nossa cerveja e depois íamos para a casa dela. Seu toque era tão suave como o balançar das suas saias ao vento. Havia algo de metafísico no nosso beijo e o sexo com ela me fazia pensar que, pela primeira vez, eu entendia como se dançava, pois a fluidez com que nossos corpos seguiam o ritmo do nosso prazer só podia ter a ver com aquela dançarina que me conduzia.


Lívia estava cada vez mais envolvida com a dança e me convidou para ir a uma apresentação sua. Eu, de forma veemente, recusei o convite. Depois desse convite vieram muitos outros. Ela não se chateava por eu não ir, ela entendia que a dança era subjetiva demais para mim, eu precisava de algo mais métrico e linear para gostar. Depois de tantas recusas, fui influenciada por amigos que me disseram que ela, por certo, gostava muito de mim para continuar me convidando mesmo diante de tantas recusas e que, mesmo não tendo nada oficializado com ela, seria legal eu mostrar que me importava com sua arte.
Resolvi, então, que eu iria a uma apresentação, mas sem que ela soubesse. Fazia mais de um semestre que estávamos nos relacionando, sem títulos nem rótulos nem combinações. Nos encontrávamos sem pressa, sem pressão e sem cobranças. Cheguei a local do espetáculo e tomei meu assento, aguardei o inicio com cara de quem estava sendo obrigada a estar ali.


As luzes diminuíram e começou a música. Lívia entra e começa sua dança, eu não tinha ideia de que ela era dançarina solo. Ela parecia um pássaro tamanha leveza com que desenvolvia seus movimentos. Naquele momento descobri o porquê de Lívia dançar, ela era toda a sua existência ali naquele palco. Lívia flutuava. Senti como se o mundo todo não existisse mais e só estivéssemos nós duas ali e ela dançava para mim. Quando findo o espetáculo percebi meus olhos marejados, meu rosto afogueado, minhas unhas cravadas na poltrona, meus músculos enrijecidos, minha respiração ofegante e meu coração tomado de amor por Lívia.


Não tive outra escolha, senão ir ao seu encontro. Ela teve uma surpresa a me ver e aquele sorriso de sempre pintou seu rosto e eu só consegui beijá-la. Então, na minha egrégora de amor por Lívia, pedi-a em casamento ali mesmo no camarim diante de toda aquela gente da dança. Seu sorriso deu lugar a um olhar de pena e culpa. Entendi tudo naquele olhar. Lívia era livre, sua vida era como sua dança. Lívia não queria nada que a prendesse. Como um pássaro que precisa de liberdade para voar, ela precisava da liberdade para dançar, um casamento lhe seria como uma gaiola. Abracei-a pela última vez e fui embora.


Já se passaram alguns semestres desde que nos abraçamos pela última vez, mas continuo indo às suas apresentações, sempre sem ela saber e fico apreciando, de longe, sua arte, seu sorriso e, principalmente, sua liberdade que ela transforma em dança.
Lívia não dançava para mim, tampouco para o público, Lívia dança de si para si mesma.

  • Sobre a autora:

    Nasci no ano de 1992 em Porto Alegre e tenho um afeto enorme por essa cidade. É em suas ruas, praças e prédios que tenho a inspiração de muitos dos meus escritos. A escrita ocupa um lugar sagrado na minha existência, por vezes foi fuga, por outras refúgio e muitas delas cura, mas acima de tudo é meu norte e longe dela não posso ser. Eu me defino como uma Escrevedora. Escrevedora da vida, do cotidiano, das gentes e de tudo que passar pela minha inventiva cabeça. Penso que o sublime da vida esteja em suas sutilezas e é sobre elas que escrevo. Sou graduanda em Históri da Arte pela UFRGS e servidora do Judiciário do Rio Grande do Sul.

  • Informações do produto:

    Capa comum: 64 páginas

    São Paulo, 2024

    Editora Libertinagem: 1ª edição

    Formato 14x21cm

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